Diante da realidade exposta pelo diretores Manaíra Carneiro, Wagner Novais, Rodrigo Felha, Cacau Amaral, Luciano Vidigal, Cadu Barcellos e Luciana Bezerra no filme 5x Favela – agora por nós mesmos, vem a mim uma série de perguntas iniciais: Qual é o Brasil? O que os brasileiros entendem por Brasil e brasilidade? Qual a identidade do brasileiro? O que faz do Brasil Brasil, em qualquer lugar do Brasil?
O filme tem um ar ao mesmo tempo côntico – dadas as narrativas, que lembram alguns contos de Carlos Drummond de Andrade e Lígia Fagundes Telles – e profundamente realista, numa descrição minuciosa da vida nas favelas cariocas, a qual chega a ser ainda mais verossímil do que nas produções Tropa de Elite (José Padilha, 2007) e Cidade dos Homens (Rede Globo, série, 2002-2005).
O quinto episódio do filme, Acende a Luz, dirigido por Luciana Bezerra, foi para mim o mais marcante, não pelo enredo, mas pela simbologia da idéia central, das cenas e dos argumentos.
É véspera de Natal e os moradores do morro estão sem luz. Os técnicos da companhia de energia elétrica não deram conta de restabelecer o funcionamento de um equipamento e, num esforço para tentar garantir que o serviço seja concluído antes do anoitecer, os moradores “seqüestram” um dos técnicos.
Mas a estratégia não surte o resultado desejado e, depois de muita insistência, tudo o que o técnico consegue é fazer a luz funcionar em apenas um poste em todo o morro. E é exatamente sob a luz deste único poste que a vizinhança vem comemorar o seu Natal.
A cegueira que se impõe pela falta da luz. A esperança e a espera pelo seu brilho. Uma luz dada aos homens na noite de Natal. A festa que a todos congrega. O encontro dos diferentes sob a luz.
São todos certamente temas muito interessantes para uma reflexão sobre o episódio e sua relação com o próprio sentido do Natal de Jesus.
Mas outro detalhe me vem.
Na trilha sonora de Acende a Luz, a primeira música executada chama-se Solo do Ribeirinho. Ao contrário do que a própria proposta inicial do filme possa sugerir, a música não é um funk carioca, mas uma guitarrada, ritmo tipicamente paraense, filho “pobre” das antigas guitarradas portuguesas, irmão do carimbó, e parente não muito distante do merengue caribenho, do brega paraense e da jovem guarda – referências comumente citadas pelos tradicionais mestres da guitarrada, como Aldo Sena, Curica e Vieira, ou pelos apreciadores do ritmo.
E surge uma nova questão: o que um ritmo tradicional muito pouco conhecido, que não é nacionalmente popular como a Banda Calypso, executado por mestres tocadores de viola do interior do Pará, tem a ver com a favela carioca?
Um caminho de resposta está em olhar para a periferia. O que nos dizem os moradores da favela da maré? O que nos dizem os ribeirinhos do rio Tapajós? Quais as cores e as dores dos sertanejos do Caicó e dos pescadores de Paraty? Que anseios trazem no coração os guarani do Rio Grande do Sul e os negros do Silêncio do Matá, no coração da Amazônia, próximo a Óbidos?
No princípio de 2008, acompanhei a notícia dos suicídios frequentes em tribos indígenas do Mato Grosso do Sul: em apenas um mês, mais de dez jovens se suicidaram. Um deles, que havia se enforcado, pendia em uma corda amarrada a um galho de árvore e trazia sob os pés, no chão, a inscrição: “Eu não tenho lugar”.
O anseio é um só, o grito é um só. É o grito da periferia pelo espaço, pela liberdade, pelo respeito. É um anseio, um profundo anseio, por dias melhores. Por um dia em que a luz brilhe tanto, que não mais sejam necessárias a luz do sol, da lua ou dos bulbos das lâmpadas incandescentes.
Concluo este artigo com um poema que é uma letra de música. Na verdade, um lundu¹.
O poema fala de sede, de água e de uma vida que corre como um rio.
Para o coração dilacerado e ressecado pela pobreza e pelo desrespeito, há uma água tão pura que nem existe no mundo, mas que pode ser experimentada no coração de quem tem a Jesus.
É setembro, mês em que voltam as chuvas no Brasil. Esperança de fim das queimadas que assolam o país. Esperança de boa safra no próximo verão. Esperança de libertação para os pés que foram colocados de escanteio. Esperança de salvação para o coração do homem.
Alto Mar
Arlindo Lima
Começa o dia de novo,
o sol ainda finge de morto.
Minha vida é esse rio,
represa de desafio,
que o vento filtra os brios,
pois é necessário regar.
Vamos molhar,
água levar...
“A água da vida eu cedo”.
A sede afoga o moleque
e, quanto mais cedo ela cede,
mais cedo na pesca ele investe.
A profundeza estremece,
pois vamos ganhar alto mar.
Vamos pescar,
água levar...
Mas temo a maré quando baixa,
pois nem chuva forte lhe basta.
Eu me distancio da margem,
o barro é a minha imagem.
Então busco a fonte, verdade,
pra água da vida tomar
Vou me molhar,
água tomar...
Ouvir "Mestres da Guitarrada - Solo do Ribeirinho"
NOTAS
1. Lundu: dança ritmada por tambores, parte do folclore nortista paraense registrado por Mário de Andrade em suas viagens pelo Brasil nas primeiras décadas do século XX e ainda hoje muito apreciada nas rodas de danças folclóricas em Belém.
FONTES
5x Favela: agora por nós mesmos. Disponível em: www.5xfavela.com.br, acesso em 02 de setembro de 2010.