sábado, 8 de março de 2008

tabatinga

André Coelho

uma mulher quebrou-me em pedaços;
os homens pisaram;
e virei farelo piracuí.

o vento – aquele
que não se sabe de onde vem
nem para onde vai,
mas se ouve a sua voz –
bateu forte
e misturou meu pó na terra,
de onde vim.

choveu
e fui parar no igarapé
com pitiú de cobra.

mas um homem,
aliás, o filho do homem,
achou-me ali,
suja tabatinga
com restos de folhas
e ferpas de madeira.

e agora me olha enternecido,
como a cadela à sua cria,
e (meu Deus!) limpa-me
e pergunta se quero ser vaso.
e pergunta se quero ser vaso.
e pergunta se quero ser.
e pergunta se quero.
e pergunta.

quanto tempo suportarei em silêncio?


Rio de Janeiro, RJ
2006


GLOSSÁRIO

piracuí: farinha de peixe – o peixe é salgado e seco ao sol, e depois apiloado; o processo é muito comum nas populações e cidades do baixo rio Amazonas; o peixe comumente usado é o Acari, mas também pode-se fazer com carne de jacaré.

igarapé: pequeno rio amazônico; não confundir com riacho.

pitiú: cheiro forte, impregnante, normalmente de peixe. a expressão é indígena e muito usada entre os nortistas, podendo referir-se também ao cheiro de cobra, ovo cru, e odores do gênero.

tabatinga: uma espécie de argila branca, encontrada em muitos igarapés.

Um comentário:

Iara disse...

Menino, nunca me dissestes que és poeta... São lindos esses teu escritos!

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